Este livro, de excelentes trabalhos doutrinários e reflexões jurídicas, lavradas por Magistrados de ontem e de hoje em homenagem ao Desembargador Edgar de Moura Bittencourt, representa a iniciativa de justíssimo reconhecimento a um Magistrado que teve o apreço e o respeito dos seus contemporâneos e projeta admirada lembrança nos pósteros. Não é comum que um Juiz se torne notável pelas suas posturas políticas, sendo freqüente que adquira notoriedade pelo trabalho intelectual e exercício pertinaz das funções julgadoras. O Desembargador Edgar de Moura Bittencourt, entretanto, realizou-se pessoalmente nessas duas vertentes da sua história individual, mercê da sua bravura, que era um traço do seu caráter, e da elaboração de textos jurídicos finamente produzidos, ultrapassando aquelas suposições simplificadoras geralmente encontráveis em tempos sem mudanças. Foi um trabalho sofisticado de conciliador esse que o Desembargador Edgar exerceu durante a trajetória da sua quase longa vida, pois nascido em Ribeirão Preto, em 1908 e desencarnado em São Paulo, em 1983, com 75 anos completos, idade não excessiva para os padrões de hoje. Mas o labor intelectual do Desembargador Edgar, no qual soube harmonizar judicatura e doutrina jurídica, este sim ultrapassou a vastidão que amiúde se encontra marcando a sua produção com regularidade eficiente, o que o eleva além do tradicional e comum. O homenageado nesta obra obteve o grau de Bacharel em Direito na tradicional Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, no ano de 1930, tão emblemático na mais recente história do Brasil, não apenas por motivos políticos, mas também por marcar o início de duas décadas de grandes transformações sociais e jurídicas que ainda repercutem nos dias da nossa atualidade. Relembre-se que, a partir de 30, um acelerado movimento legislativo sacudiu as estruturas conservadoras do País, com a implantação, durante a década, de duas Constituições (1934 e 1937), sem embargo das restrições de natureza ideológica e libertária dessas Cartas e dos golpes desferidos nos ideais republicanos e federativos. Por igual, assistiu-se, naquela época, à consagração de certos direitos de organização política, com o Código Eleitoral de 1932, não obstante, convém lembrar, a intolerância com os opositores e divergentes do regime getulista, bem como com determinados mínimos legais de proteção aos trabalhadores, com a CLT, de 1943. Pouco antes, em 1939, surgira o Código de Processo Civil, unificador da disciplina judiciária, que teria prolongada vigência, até 1973, com o Código Buzaid, além do Código Penal, de 1940, e do Código de Processo Penal, de 1941. O Desembargador Edgar de Moura Bittencourt viveu o auge dessa ebulição legislativa como Magistrado singular ou Juiz de Direito de Primeira Instância, como então se chamavam os hoje Juízes de Primeiro Grau, em Itapeva, Jundiaí, Bariri, Taubaté e São Paulo, como titular de Vara Cível. A partir de 1948, foi substituto num Tribunal de Justiça de São Paulo, até 1951, sendo nomeado, em 1954, para o Tribunal de Alçada e, em 1955, para a Corte paulista, no cargo de Desembargador. Nesse interregno, o Desembargador Edgar de Moura Bittencourt teve oportunidade de realizar extensa obra doutrinária de Direito e participou, sempre com destaque, de vários congressos nacionais e internacionais. São da sua autoria os livros A instituição do Júri, O Concubinato no Direito, Guarda de Filhos e outros, nas searas do direito familiar, alimentário e concubinário, sempre com propostas e sugestões inovadoras e originais, inclusive no domínio dogmático do Direito Penal, pelo que foi homenageado na Sociedade Internacional de Profilaxia Criminal, sediada em Paris, França. Vale recordar que se deve ao Desembargador Edgar de Moura Bittencourt uma das primeiras ? - se não a pioneira -? manifestações jurisprudenciais sobre o importante e controvertido tema da chamada desconsideração da pessoa jurídica, para efeito de sanção contra quem se vale da estrutura da empresa com a fim de praticar ilícitos, quando proclamou que a separação das pessoas físicas dos sócios da pessoa social não pode ser vista como um tabu para entravar a ação estatal. Cumpre assinalar que esse entendimento é de estratégica utilidade nos dias correntes e que é manifesta a sua importância, consoante registram julgados recentes. Com certeza, maior relevância há de ter no processo do futuro, na própria medida em que se agigantam as organizações empresariais, globalizam-se as suas relações e, por conseguinte, alargam-se os horizontes de ilicitudes que não podem e não devem ser cobertos na cortina de fumaça da personalidade social, como já alertava o Desembargador Moura Bittencourt. Mas os reveses da política, subsidiados por impulsos subjetivos prepotentes e arbitrários, haveriam de cortar, em pleno caminho ascensional, inopinada e injustamente, a carreira promissora e já vitoriosa do Desembargador Edgar de Moura Bittencourt, ejetado que foi da Magistratura paulista pela força de ato que só a sua própria força justifica. A sua formação estóica e a estrutura da sua personalidade inquebrantável, porém, livraram-no da derrocada psíquica, e ele encontrou forças, nessa adversidade inesperada e injustificada, para prosseguir a sua faina de homem produtivo, esclarecido e adiantado do seu tempo. A anistia que o beneficiou, ao lado do seu inegável significado histórico, não recompõe a imensurável perda que se infligiu à Magistratura de São Paulo e do Brasil. Todavia, esta homenagem intelectual de Juristas, doutrinadores e Magistrados reconforta o seu coração eterno e seguramente fará a figura do Desembargador Edgar de Moura Bittencourt destacar-se do dia em que, de súbito, se escureceu a sua vida e, de imediato, resplender na magnitude do seu talento, inteligência e exemplar probidade. Brasília, outubro de 2008. Ministro Cesar Asfor Rocha Presidente do Superior Tribunal de Justiça